sábado, 24 de abril de 2010

Uma semana depois

Acordo cansada.

Já não dormia direito há vários dias.

Batem a porta, era a minha mãe.

-“Filha, vens?”

Hoje era o dia do funeral.

-“Não”, digo friamente.

Fecho os olhos.

Acordo...

Acordo.

Estava no sofá.

Parecia que tinha acordado de um pesadelo, doía-me o corpo inteiro.

Vejo o Sr. Rui, o pai do Filipe, à porta da sala.

Ele tinha os olhos inchados.

-“Filhinha, como te sentes?”

-“Como se o mundo tivesse caído em cima de mim. O Filipe já chegou?”

Ele olha para mim pasmado,

-“ Não te lembras…?”

Vem me tudo à cabeça, o corpo, a linha, o ladrar.

Escondo a cabeça debaixo da manta.

-“Pensava que era um pesadelo…”

Oiço o barulho distante da sirene da ambulância.

-“Ele ainda…”

-“ Não. É para ti.”

Ponho-me em pé.

-“ Não preciso de ambulância nenhuma. Preciso de o ver. Por favor. Preciso…”

Enquanto caminho para a porta começo a chorar, mas ele impede a minha tentativa de sair da sala.

-“Não saias daqui. Por favor. Já se perdeu demasiado hoje.”

Sinto o meu corpo débil. Não consigo sentir as minhas pernas. Caio no chão.

-“Não acredito… aquilo era um pesadelo!”

Sinto umas mãos a volta dos meus ombros.

-“Ele foi egoísta.”

Olho para cima.

Os olhos dele estavam frios como a pedra.

Nunca o tinha visto assim.

Mas ele tinha razão.

O Filipe tinha acabado com tudo.

Choro.

Batem à porta. Era a ambulância.

Pegaram em mim.

Nem luto.

Outra perspectiva

(Dona Emília)

Vejo-a a entrar na floresta, volto as costas e caminho para a cozinha.

(…)

Oiço ladrar. Era o Rex. Mas não vejo ninguém a vista.

O meu coração palpita a uma velocidade desumana.

O ladrar não parava.

Começo a correr.

A correr em direcção ao barulho.

Chego.

As lágrimas começam a correr-me pela cara.

Vejo dois corpos imóveis.

-“Filho… Filho!”

Seu corpo está frio, desfeito.

Pensei que estava a sonhar.

Já não há nada a fazer.

Viro-me para ela.

Está fria, mas estava viva.

O que teria acontecido?

Corro para a casa, para chamar alguém…

domingo, 11 de abril de 2010

Ao acordar...

IV

Acordo com alguém a bater à porta.

“O Filipe já te deu notícias?”

Olho para o meu telemóvel.

-“Não recebi nada Dona Emília.”

Desço as escadas atrás dela. Ela pára em frente da mesa de entrada.

-“É normal então, ele deixou o telemóvel aqui!”

O meu coração deu um pulo, não era o costume dele.

-“Dona Emília, vou passear com o Rex no quintal. Posso?”

-“Claro!”

Saio pela porta das traseiras. Filipe morava mesmo em frente duma floresta. O tempo estava nublado, tinha chovido e cheirava a musgo fresco.

Olho para o relógio, já passava do meio-dia. Tinha combinado estar com ele há duas horas atrás.

Tudo perdeu o sentido.

O Rex ladrou e correu para dentro da floresta, a caminho da linha do comboio. Andei atrás dele, pois ele não se podia perder.

Ao chegar a linha do comboio, vejo o Rex a ladrar na curva que a linha fazia.

Vejo algo escuro. Sinto o meu coração a acelarar. Chego à beira da linha.

Vejo seu corpo estendido na linha, imóvel, desfeito.

Entro em choque.

Desmaio.

A chegar à casa dele...

III

Desligo o carro e respiro fundo.

Estava à espera de o ver a sair pela porta fora, com o seu jeito, aquele jeito que nem eu sabia explicar.

Mas ninguém saía.

Saí do carro e caminhei até a porta da casa. Bati a porta. Era a mãe dele.

-“Ó filhota, entra, entra. O Filipe saiu, mas deve estar quase a chegar. Mas estás a vontade.”

-“ Está bem Dona Emília, eu espero no quarto dele.”

Subo as escadas. A meio das escadas encontro o Rex, seu cão.

-“Rex, anda comigo.”

Faço-lhe uma festinha e ele vem a correr atrás de mim.

Entro no quarto dele, desarrumado como o costume.

Sorrio a olhar para a sua mesinha de cabeceira. Estava lá uma foto do nosso baile de finalistas, eu tinha sido o seu par.

Flashback

Estava o sol a nascer e estávamos a caminhar pela praia descalços.

-“Quando formos velhinhos, será que vamos ter forças para voltar a fazer isto?”

-“Quando fores velhinho não vais querer saber de mim, vais ter uma enfermeira novinha para tratar de ti.”

Sinto as suas mãos a abraçarem me pelas costas.

-“Tu para mim serás a única enfermeira que eu vou querer a tomar conta de mim.”

-“Lembra-te que quando tu fores velhinho, eu também vou ser velhinha!”

-“A minha velhinha.”

Presente

Deito-me em cima da cama dele, a pensar enquanto brincava com o meu colar preferido, um colar que ele me tinha dado, que dentro do coração tinha uma foto nossa de cada lado.

Acabo por adormecer.

A manhã seguinte

II

Filipe piscou-me o olho.

Abro os olhos. Era a manhã seguinte, estou deitada na cama. Sinto um aperto no meu coração, um pressentimento que algo não está bem.

Caminho para o quarto seguinte, que é do meu avô, e olho para dentro. Dormia ele um sono profundo. Dou um suspiro de alívio. Mas o aperto continuava lá.

A mãe já tinha saído de casa e o irmão tinha passado a noite em casa de um colega.

Caminho para a cozinha, e olho para o meu telemóvel, tinha o deixado cá na noite anterior. Vi que tinha uma mensagem do Filipe:

Bom dia florzinha, não te esqueças de mim ;)

Sorri.

A noite anterior tinha sido maravilhoso, mas sinto-me confusa. Eu sei que não são sentimentos concretos, mas estão lá, algures. Ele é aquilo que me completa, algo que já não sentia a algum tempo. Não sei de que maneira, mas completa-me.

Concentrada a pensar, entro no carro e saio de casa.

Marés

I

A água batia nas rochas violentamente, mesmo assim o mar acalmava-me, fazia-me sentir serena. O tempo já tinha escurecido, mas o roxo do pôr-do-sol ainda se reflectia na areia. Ele tinha adormecido encostado ao meu ombro. Sorri, já tinham passado quatro anos desde do inicio da nossa amizade, e que quatro anos! Já tínhamos passado tanta tristeza, tanta alegria, tantas zangas, mas continuávamos os mesmos malucos desde do primeiro dia.

Os seus pequenos suspiros preenchiam o barulho do mar no silêncio da noite. Este cenário era-me familiar, já tão familiar.

O telemóvel toca. Era a mãe. O jantar estava pronto.

-“Diz à sogrinha que ponha mais um pratinho para mim.”

Tinha ele acordado com o barulho do telemóvel.

-“Achas que ela se ia esquecer de ti parvinho?”

Ele beijou a minha testa, “beijo de juízo”, como ele me costuma dizer, como eu tivesse pouco. Abraçou-me.

-“Estás gelada! Não tens frio?”

Ele tinha razão, a minha pele estava fria, mas eu não tinha dado por ela. Ainda era o inicio da primavera, as noites ainda eram frias mas eu tinha-me esquecido de trazer o casaco, estava na mala do carro.

Sinto uma camisola nas pernas.

-“Veste. Não te podes constipar.”

Visto a camisola, era-me grande mas sentia como me servisse perfeitamente. Cheirava ao seu perfume, Armani, o presente que lhe tinha dado no seu último aniversário.

Ele deitou a sua cabeça no meu colo.

-“Tenho preguiça.”

-“Já nasceste com preguiça, conta-me algo de novo…”

-“Novo? Hmmmm, estás muito bonita assim com a minha camisola!”

Sorri.

-“Hahaha. É mesmo a minha cor não é? É minha agora!”

Ponho a língua de fora.

-“Pronto, ela é tua por hoje.”

Faço-lhe festinhas no cabelo. Estava grande, mas gostava de o ver assim.

Fecha ele os olhos.

O telemóvel toca.

-“Vamos embora antes que a sogrinha me bata.”

Andamos até o carro, o braço dele à minha volta. Sentia-me pequena, mas sentia-me bem.

Abre-me a porta e sento-me.

Ligo o carro.

Ele senta-se.

Partimos.

(…)

Saímos, depois do jantar. A pé. A caminhada do costume.

-“Tenho a barriga mesmo cheia. A tua mãe sabe conquistar-me, sabes?”

-“Cheira-me que vou ter um padrasto.”

-“Hahaha, primeiro tinha que me casar contigo.”

-“De que estas a espera?”

-“De ganhar o dinheiro para te dar o diamante que tanto queres.”

Sorri.

Flashback:

À 2 anos atrás, no casamento da prima Maria, estavamos sentados na mesa com um jovem casal que estava noivo.

-“Ai, Fi, quero um diamante igualzinho a este. É perfeito!”

-“Pronto, eu compro-te um igual.”

-“Prometes?”

-“Prometo.”

Presente

Após o jantar, fomos ao jardim onde costumamos ir e sentei-me no banco do costume. Ele senta-se no meu colo.

-“Hoje sou o bebé.”

-“Sempre foste o meu bebé.”

Sorri.

Ele fixa o seu olhar num gato que estava no outro lado do jardim.

-“Posso te fazer uma pergunta?”

-“Podes.”

-“Amanhã. De manhã. És minha não és?”

-“Sempre fui. Sou agora até, não vês?”

-“Sabes que não foi isso que eu quis dizer. Amanhã vens ter comigo?”

-“Claro!”

Ele olha seriamente nos meus olhos.

-“Deixas-me fazer uma coisa?”

-“O quê?”

-“Deixas?”

Hesitante, respondo.

-“Podes claro.”

Não reparei no que ele fez, fiquei pasmada. Os lábios dele eram doces, acolhedores. Nunca me tinha sentido tão confortável.

Fiquei sem palavras e beijei-o de volta.

Silêncio.

Eu não sabia o que dizer. Estava preenchida.

Ele pegou na minha mão que estava a tremer. Encostei a minha cabeça no seu ombro.

(…)

Chegamos ao carro dele.

Ele abraçou-me, um abraço longo.

Voltou a beijar a minha testa.

-“Amanhã estarei a tua espera.”

Filipe pisca-me o olho.