Acordo cansada.
Já não dormia direito há vários dias.
Batem a porta, era a minha mãe.
-“Filha, vens?”
Hoje era o dia do funeral.
-“Não”, digo friamente.
Fecho os olhos.
Acordo cansada.
Já não dormia direito há vários dias.
Batem a porta, era a minha mãe.
-“Filha, vens?”
Hoje era o dia do funeral.
-“Não”, digo friamente.
Fecho os olhos.
Acordo.
Estava no sofá.
Parecia que tinha acordado de um pesadelo, doía-me o corpo inteiro.
Vejo o Sr. Rui, o pai do Filipe, à porta da sala.
Ele tinha os olhos inchados.
-“Filhinha, como te sentes?”
-“Como se o mundo tivesse caído em cima de mim. O Filipe já chegou?”
Ele olha para mim pasmado,
-“ Não te lembras…?”
Vem me tudo à cabeça, o corpo, a linha, o ladrar.
Escondo a cabeça debaixo da manta.
-“Pensava que era um pesadelo…”
Oiço o barulho distante da sirene da ambulância.
-“Ele ainda…”
-“ Não. É para ti.”
Ponho-me em pé.
-“ Não preciso de ambulância nenhuma. Preciso de o ver. Por favor. Preciso…”
Enquanto caminho para a porta começo a chorar, mas ele impede a minha tentativa de sair da sala.
-“Não saias daqui. Por favor. Já se perdeu demasiado hoje.”
Sinto o meu corpo débil. Não consigo sentir as minhas pernas. Caio no chão.
-“Não acredito… aquilo era um pesadelo!”
Sinto umas mãos a volta dos meus ombros.
-“Ele foi egoísta.”
Olho para cima.
Os olhos dele estavam frios como a pedra.
Nunca o tinha visto assim.
Mas ele tinha razão.
O Filipe tinha acabado com tudo.
Choro.
Batem à porta. Era a ambulância.
Pegaram em mim.
Nem luto.
(Dona Emília)
Vejo-a a entrar na floresta, volto as costas e caminho para a cozinha.
(…)
Oiço ladrar. Era o Rex. Mas não vejo ninguém a vista.
O meu coração palpita a uma velocidade desumana.
O ladrar não parava.
Começo a correr.
A correr em direcção ao barulho.
Chego.
As lágrimas começam a correr-me pela cara.
Vejo dois corpos imóveis.
-“Filho… Filho!”
Seu corpo está frio, desfeito.
Pensei que estava a sonhar.
Já não há nada a fazer.
Viro-me para ela.
Está fria, mas estava viva.
O que teria acontecido?
Corro para a casa, para chamar alguém…
IV
Acordo com alguém a bater à porta.
“O Filipe já te deu notícias?”
Olho para o meu telemóvel.
-“Não recebi nada Dona Emília.”
Desço as escadas atrás dela. Ela pára em frente da mesa de entrada.
-“É normal então, ele deixou o telemóvel aqui!”
O meu coração deu um pulo, não era o costume dele.
-“Dona Emília, vou passear com o Rex no quintal. Posso?”
-“Claro!”
Saio pela porta das traseiras. Filipe morava mesmo em frente duma floresta. O tempo estava nublado, tinha chovido e cheirava a musgo fresco.
Olho para o relógio, já passava do meio-dia. Tinha combinado estar com ele há duas horas atrás.
Tudo perdeu o sentido.
O Rex ladrou e correu para dentro da floresta, a caminho da linha do comboio. Andei atrás dele, pois ele não se podia perder.
Ao chegar a linha do comboio, vejo o Rex a ladrar na curva que a linha fazia.
Vejo algo escuro. Sinto o meu coração a acelarar. Chego à beira da linha.
Vejo seu corpo estendido na linha, imóvel, desfeito.
Entro em choque.
Desmaio.
III
Desligo o carro e respiro fundo.
Estava à espera de o ver a sair pela porta fora, com o seu jeito, aquele jeito que nem eu sabia explicar.
Mas ninguém saía.
Saí do carro e caminhei até a porta da casa. Bati a porta. Era a mãe dele.
-“Ó filhota, entra, entra. O Filipe saiu, mas deve estar quase a chegar. Mas estás a vontade.”
-“ Está bem Dona Emília, eu espero no quarto dele.”
Subo as escadas. A meio das escadas encontro o Rex, seu cão.
-“Rex, anda comigo.”
Faço-lhe uma festinha e ele vem a correr atrás de mim.
Entro no quarto dele, desarrumado como o costume.
Sorrio a olhar para a sua mesinha de cabeceira. Estava lá uma foto do nosso baile de finalistas, eu tinha sido o seu par.
Flashback
Estava o sol a nascer e estávamos a caminhar pela praia descalços.
-“Quando formos velhinhos, será que vamos ter forças para voltar a fazer isto?”
-“Quando fores velhinho não vais querer saber de mim, vais ter uma enfermeira novinha para tratar de ti.”
Sinto as suas mãos a abraçarem me pelas costas.
-“Tu para mim serás a única enfermeira que eu vou querer a tomar conta de mim.”
-“Lembra-te que quando tu fores velhinho, eu também vou ser velhinha!”
-“A minha velhinha.”
Presente
Deito-me em cima da cama dele, a pensar enquanto brincava com o meu colar preferido, um colar que ele me tinha dado, que dentro do coração tinha uma foto nossa de cada lado.
Acabo por adormecer.
II
Filipe piscou-me o olho.
Abro os olhos. Era a manhã seguinte, estou deitada na cama. Sinto um aperto no meu coração, um pressentimento que algo não está bem.
Caminho para o quarto seguinte, que é do meu avô, e olho para dentro. Dormia ele um sono profundo. Dou um suspiro de alívio. Mas o aperto continuava lá.
A mãe já tinha saído de casa e o irmão tinha passado a noite em casa de um colega.
Caminho para a cozinha, e olho para o meu telemóvel, tinha o deixado cá na noite anterior. Vi que tinha uma mensagem do Filipe:
Bom dia florzinha, não te esqueças de mim ;)
Sorri.
A noite anterior tinha sido maravilhoso, mas sinto-me confusa. Eu sei que não são sentimentos concretos, mas estão lá, algures. Ele é aquilo que me completa, algo que já não sentia a algum tempo. Não sei de que maneira, mas completa-me.
Concentrada a pensar, entro no carro e saio de casa.
A água batia nas rochas violentamente, mesmo assim o mar acalmava-me, fazia-me sentir serena. O tempo já tinha escurecido, mas o roxo do pôr-do-sol ainda se reflectia na areia. Ele tinha adormecido encostado ao meu ombro. Sorri, já tinham passado quatro anos desde do inicio da nossa amizade, e que quatro anos! Já tínhamos passado tanta tristeza, tanta alegria, tantas zangas, mas continuávamos os mesmos malucos desde do primeiro dia.
Os seus pequenos suspiros preenchiam o barulho do mar no silêncio da noite. Este cenário era-me familiar, já tão familiar.
O telemóvel toca. Era a mãe. O jantar estava pronto.
-“Diz à sogrinha que ponha mais um pratinho para mim.”
Tinha ele acordado com o barulho do telemóvel.
-“Achas que ela se ia esquecer de ti parvinho?”
Ele beijou a minha testa, “beijo de juízo”, como ele me costuma dizer, como eu tivesse pouco. Abraçou-me.
-“Estás gelada! Não tens frio?”
Ele tinha razão, a minha pele estava fria, mas eu não tinha dado por ela. Ainda era o inicio da primavera, as noites ainda eram frias mas eu tinha-me esquecido de trazer o casaco, estava na mala do carro.
Sinto uma camisola nas pernas.
-“Veste. Não te podes constipar.”
Visto a camisola, era-me grande mas sentia como me servisse perfeitamente. Cheirava ao seu perfume, Armani, o presente que lhe tinha dado no seu último aniversário.
Ele deitou a sua cabeça no meu colo.
-“Tenho preguiça.”
-“Já nasceste com preguiça, conta-me algo de novo…”
-“Novo? Hmmmm, estás muito bonita assim com a minha camisola!”
Sorri.
-“Hahaha. É mesmo a minha cor não é? É minha agora!”
Ponho a língua de fora.
-“Pronto, ela é tua por hoje.”
Faço-lhe festinhas no cabelo. Estava grande, mas gostava de o ver assim.
Fecha ele os olhos.
O telemóvel toca.
-“Vamos embora antes que a sogrinha me bata.”
Andamos até o carro, o braço dele à minha volta. Sentia-me pequena, mas sentia-me bem.
Abre-me a porta e sento-me.
Ligo o carro.
Ele senta-se.
Partimos.
(…)
Saímos, depois do jantar. A pé. A caminhada do costume.
-“Tenho a barriga mesmo cheia. A tua mãe sabe conquistar-me, sabes?”
-“Cheira-me que vou ter um padrasto.”
-“Hahaha, primeiro tinha que me casar contigo.”
-“De que estas a espera?”
-“De ganhar o dinheiro para te dar o diamante que tanto queres.”
Sorri.
Flashback:
À 2 anos atrás, no casamento da prima Maria, estavamos sentados na mesa com um jovem casal que estava noivo.
-“Ai, Fi, quero um diamante igualzinho a este. É perfeito!”
-“Pronto, eu compro-te um igual.”
-“Prometes?”
-“Prometo.”
Presente
Após o jantar, fomos ao jardim onde costumamos ir e sentei-me no banco do costume. Ele senta-se no meu colo.
-“Hoje sou o bebé.”
-“Sempre foste o meu bebé.”
Sorri.
Ele fixa o seu olhar num gato que estava no outro lado do jardim.
-“Posso te fazer uma pergunta?”
-“Podes.”
-“Amanhã. De manhã. És minha não és?”
-“Sempre fui. Sou agora até, não vês?”
-“Sabes que não foi isso que eu quis dizer. Amanhã vens ter comigo?”
-“Claro!”
Ele olha seriamente nos meus olhos.
-“Deixas-me fazer uma coisa?”
-“O quê?”
-“Deixas?”
Hesitante, respondo.
-“Podes claro.”
Não reparei no que ele fez, fiquei pasmada. Os lábios dele eram doces, acolhedores. Nunca me tinha sentido tão confortável.
Fiquei sem palavras e beijei-o de volta.
Silêncio.
Eu não sabia o que dizer. Estava preenchida.
Ele pegou na minha mão que estava a tremer. Encostei a minha cabeça no seu ombro.
(…)
Chegamos ao carro dele.
Ele abraçou-me, um abraço longo.
Voltou a beijar a minha testa.
-“Amanhã estarei a tua espera.”
Filipe pisca-me o olho.